Crônicas

Dois Dedos de Prosa

Sempre quis escrever uma história com este título: 'Dois dedos de prosa'. Já havia, mesmo, escolhido o nome do herói cujas proezas seduziriam o leitor curioso de lhes conhecer o desenlace: Douglas Guarabira. Essa parte da tarefa estava, pois, cumprida.

Seria uma narrativa amena; uma historieta, talvez. Isso! Um texto curto, seguindo a tradição oral: coisa contida, sem derramamentos líricos ou largos vôos; desígnio que teria, ainda, o bendito efeito de desobrigar os críticos mais rigorosos (desde que os houvesse preocupados com minha obra) de estranharem a ausência de introspecções psicológicas, intertextualidade e quetais.

Um conto, portanto, em que o façanhudo Douglas Guarabira fosse flagrado em diuturno contacto com uma realidade desprovida de revelações humanas impactantes, deslocando o eixo da história para a sensibilidade da personagem, atribuindo-lhe a incumbência de exibir ao leitor atento a atmosfera grandiosa que o envolvia, o brilho de sua inteligência, o exímio retratista que era, capaz de, com dois ou três traços, levantar um 'tipo'.

Para que ficasse divertido, emprestei a Douglas uma graça picante e uma pena atilada (quase ia me esquecendo de anotar que o homem era poeta e, mais do que isso, com o estofo viperino de um Gregório de Matos).

Com uma personagem dessas — aí estava o grande achado —, poderia desprezar a intriga ficcional, manter a simplicidade prometida e, ainda por cima, desobrigar-me de justificar o título (o sugestivo rótulo que deu origem a este discurso), sem deixar de aproveitar-lhe a sonoridade que tanto me cativara.

Sanado o processo, tratei de providenciar um cenariozinho simpático: uma mesinha de canto, num bar da zona sul do Rio de Janeiro, onde o bardo pontificasse, dissesse a que veio. O arteiro fez bem mais do que lhe foi encomendado. Alargou, por conta própria, as fronteiras de seu talento, despejando sobre a carcaça desprevenida dos semelhantes uma insuspeita elevação de espírito e a irresistível eloqüência que persuade pelo sentimento.

Mas, no teatro que armou com a intenção de destilar seu veneno dissolvente sobre os espíritos incautos, que teria feito esse maroto para driblar as proverbiais afinidades eletivas dos leitores, se é que lhe ocorreu tal expediente?

Ora, no caso presente é perfeitamente razoável presumir que os leitores — independentemente de temperamento, educação, sagacidade e outro fatores subjetivos — não teriam pruridos em aprovar a fertilidade imaginativa de tão sublimado artista, e louvariam, fascinados, sua veia satírica: — Leu o epigrama sobre o dono da butique? Guarabira o chama de 'nefelibata pachola'. É demais essa; caiu como uma luva. O cara é di-a-bó-li-co!

Correriam, então, a fotocopiar a página que divulgava a fenomenal tirada. E todos gabariam a argúcia, a pena ferina do vate e garantiriam entusiasmados que 'ninguém escapava ao seu esporão de galo de briga ... o maganão!'.

A comunidade se orgulharia de conviver no bairro com tão fecundo gênio. As universitárias que dividiam um apartamento em frente ao bar, por um momento largariam o cuidado com suas pesquisas para observar da janela aquele homem de meia idade, caprichoso em cultivar maneiras tão excêntricas, inclusive no vestir.

— Pô. Um cara genial desses, nem liga pras aparências; aquelas Havaianas verdes são o maior barato!

— Aí é que tá, esse jeitinho despojado ...

— 'Jeitinho despojado'? Vocês são bobas mesmo. É coisa .... Eu, nem me interessa a idade, se me pego com ele, não sei não...

A fama se espalharia por outros bairros da cidade. Nas uisquerias do centro, boêmios ilustres, gente lida e vivida, se identificaria com o tipo escarnecedor mas severo de Douglas, com sua inquieta melancolia. Condenariam a censura apressada dos que o consideravam meramente destrutivo, vislumbrando na verve aparentemente inconseqüente um agudo senso de realidade política.

Empresários atarefados, em seus escritórios, encontrariam tempo para telefonar aos amigos:

— Rapaz, compra a Tribuna da Imprensa de hoje. Reproduz um ditirambo fantástico do Guarabira. Não vá esquecer, hein! É de cabo de esquadra.

Homens de espírito requintado, habituados a tirar proveito de pilhérias famosas, assanhados com os ditos jocosos do estimado causeur, mandariam às favas o recato e repetiriam durante o jantar, entre senhoras, certas irreverências que as pessoas finas e educadas guardam para a hora da sobremesa.

Até aquela gente sem-graça, que se situa acima dessas querelas vãs da dúvida e da inspiração, arrastando sua existência incolor em intermináveis conversações pelo celular, fingiria entender e aprovar 'as piadas desse sacana do Douglas'.

A moça infiel, em seu amargo desencanto com o amante, que não fez jus à preferência dela, volta pra casinha de subúrbio, para o marido que não ignorava a escapada, mas a perdoou porque lera um poema de Guarabira em que o mestre dizia ser 'raro uma mulher arrepender-se de ter sido amada por um homem indigno dela, mas certo arrepender-se de tê-lo amado'. O rapaz, confortado com o juízo enunciado na segunda parte do verso e muito agradecido a seu guru, espalharia por aí, com ar de mistério, que Guarabira salvara seu casamento.

Turistas de todas as cidades do país, passando à porta do bar retardariam os passos para bisbilhotar e anunciar, depois, que viram Douglas Guarabira em sua mesa cativa, colada à parede na qual se destacava uma foto emoldurada comemorativa do lançamento de seu livro mais recente — muito lampeiro, tendo na mão um copo de uísque com seu nome gravado —, cercado de gente deslumbrada com seu vasto saber. E seguiriam em direção à praia, comentando a boa impressão que 'aquela figuraça' lhes causara.

Fim de noite, o português cerra as portas do boteco mais tarde do que pretendia, aguardando, paciente e respeitoso, o desfecho de uma disputa literária na mesa do poeta. Ali, por meia dúzia de horas, filosofou-se a valer. Conta pendurada, o comerciante ainda encontra ânimo para sentenciar:

— Esse Guarabira é uma pândega!

Pois que seja, porque a mim — a cabeça confusa diante da magia verbal e do alcance dos vaticínios de Douglas Guarabira — resta invejar seu indiscutível sucesso. Eu, que só consegui até hoje elaborar tramas que, se baseadas em fatos reais pareceram inverossímeis, e bobas quando as inventei, considero prejudicado o propósito que tão diligentemente busquei. Assim, deixo a bola com a guarabiriana e erudita criatura. Que se arranje com os críticos, ele que mudou todo o curso da narrativa. Sim, pois com o leitor universal sempre se dá um jeito, não importa com quantos dedos de prosa.

 

 

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