Crônicas

Hotel Leblon e seus sortilégios

A restinga do Leblon, hoje recortada por avenidas, ruas e praças, cheias de suntuosos edifícios e ricas residências, quase se converteu em um vasto cemitério municipal, conforme projetou e quis, no início do século, o conhecido engenheiro André Rebouças. Não logrou seu intento, mas o que quer que tenha suspeitado de fantasmagórico, sobrenatural na região para respaldar sua predileção, parece ter se materializado muito mais tarde em mais de uma oportunidade e, por razões à primeira vista inexplicáveis, a maior parte dos acontecimentos sobrevindos guarda algum tipo de envolvimento com o Hotel Leblon.

A ciência simbólica e misteriosa dos magos, as tradições esotéricas dos sacerdotes e adivinhos, as altas hipóteses dos sábios da astronomia, o empirismo dos feiticeiros e, até, os ritos tribais de grupos incultos estabelecem, com o passar do tempo, sentenças quase nunca judiciosas, às vezes absurdas, mas que, por se confirmarem duas ou três delas, terminam inculcadas como doutrina. Assim também, como não é possível, sempre, atinar com a motivação dos efeitos causados por certos episódios, inclinamo-nos pela superstição, atribuindo-os aos fenômenos mais estranhos, quando não às coisas que estiverem próximas ou que produzam impressão peculiar, por força de qualquer predicado instigante.

O Hotel Leblon presta-se a esses feitiços. Sua crônica está repleta de trejeitos ocultos, sinais misteriosos, a começar pela destinação pouco usual para um estabelecimento hoteleiro da época, qual seja a de dar guarida a encontros furtivos, transgredindo as normas da moral vigente, a ponto de as famílias relutarem em morar na vizinhança. É fato notório que acoitava eminentes membros do legislativo em companhia de atrizes e circulavam boatos de que o Presidente Washington Luis visitava-o amiúde.

O extenso prédio amarelo que avultava no areal perdeu sua identidade quando passou a servir de sede a uma empresa dos ramos imobiliário e hoteleiro, até que o imóvel foi tombado pelo Inepac, face à importância histórica e arquitetônica da construção. Atualmente, abriga uma gataria assombrada, de todos os credos e cores, símbolo do funesto e inevitável compromisso que os fados lhe reservam.

Nos tempos de fausto, seu bar, no amplo salão do térreo, era freqüentado principalmente pelo pessoal do bairro (os casais de fora entravam discretamente pela garagem), e a mesa principal era capitaneada por Amado Benigno, o Dr. Catão, glória do futebol brasileiro e generoso mecenas, que fazia a felicidade da garotada ávida por uma taça de Pepermint, dentre as que ele espalhava pela mesa, cobrindo-as com a mão graúda de dedos aduncos e unhas roídas e confessando com voz rouca:

- Quero tudo verde!

Junto à parede, no centro, funcionava uma vitrola ornada com iluminuras, atraente novidade acionada por botões que correspondiam a números e letras, cuja combinação fazia tocar a música selecionada no mostruário.

Pelas outras mesas podiam ser vistos jóqueis renomados como Rigoni e gente de pouca expressão na vida artística, tentando sobressair, como a cantora Carmem Brown.

Pois, a primeira tragédia que nos reporta à advertência inicial desta história sucedeu ao jóquei Nestor Linhares, alto para a profissão e dado a conquistas. O acompanhante de uma mulher que ocupava mesa vizinha, agastado com os insistentes olhares do galã, ameaçou-o com um revólver. O ginete arriou as calças, mostrou a bunda e provocadoramente mandou atirar. O homem não vacilou, mandou bala. Linhares teve a artéria femoral perfurada e morreu poucos minutos depois, ainda esguichando sangue. Nem Amado, que era médico, pôde fazer algo por ele. Durante muitos anos ficou no chão a marca pardacenta que seguidas e minuciosas lavagens não conseguiram dissipar.

Meses se passaram e o Hélio Torviso, bela figura, teve o acelerador de sua motocicleta preso quando trafegava em alta velocidade, não conseguiu subir a Niemeyer e bateu na parede, logo abaixo de uma das janelas, com tamanha violência, que a cabeça entrou no tórax, deformando e encolhendo o corpo e arrancando roupas e sapatos. Um bruto insensível, à vista do cadáver encurvado e do pênis exposto, comentou:

- Caramba! Parece um bico de chaleira.

O logradouro junto ao prédio também foi palco de infortúnios semelhantes. Um lotação vindo do Vidigal perdeu a direção na descida da Niemeyer, despencou do barranco e caiu de ponta à beira do canal, ocasião em que três felizardos foram projetados pelas janelas, saindo ilesos. Os demais ocupantes ficaram presos no interior do veículo, que esbarrou num cabo de alta tensão e explodiu em chamas. A maioria morreu nos bancos; uns poucos saíram qual tochas ambulantes, rolando pelo chão. A turma que jogava um racha no campo do Grêmio veio em socorro das vítimas, tentando apagar as chamas com pisões, areia, o que estivesse mais à mão. Eu e Ronaldo pegamos o extintor de incêndio do Clube Colúmbia, na esquina da Rua Rita Ludolf, mas o equipamento despejou a espuma em meio à correria, tornando-se inútil. Morreram cerca de vinte passageiros. Quem não sucumbiu na hora, resistiu, no máximo, cinco dias, dada a gravidade das queimaduras. Acompanhamos tudo pelos jornais; um ou outro, mais solidário, passava diariamente pelo Hospital Miguel Couto, à cata de informações.

A corrida de baratinhas proporcionou pelo menos um acidente sério, protagonizado pelo argentino Victorio Coppolli e sua Bugatti, no mesmo cenário da queda do lotação.

Um vizinho, tipo solitário que se sentava junto à vitrola, nada sofreu ali, mas pode perfeitamente ter sido alcançado pelos sortilégios que emanavam do local. Era piloto de aviões e, por causa do risco inerente à profissão, evitava expressar seu afeto pelo filho pequeno, criar vínculos mais sólidos, julgando, com isso, preservá-lo de sofrimentos futuros decorrentes das calamidades que pressentia. A esposa não concordava com o vaticínio nem com a rigidez da postura preventiva e separou-se dele, que não se conformava com a decisão. Passou a beber muito e, um dia, durante exibição a que compareceram familiares dos pilotos, pretextando uma acrobacia ousada, embicou a aeronave e espatifou-se propositalmente no pátio, diante da mulher.

Merece destaque a perda irreparável de Cirandinha, o Luis Aguiar - irmão do Mário Pedregulho e do Morávio - nosso grande amigo e parceiro de bar, goleiro do Grêmio, rival de Carlson Gracie e Waldemar Santana nos ringues e invencível nas brigas de rua e, por tudo isso, temido e invejado; sobretudo invejado por gente medíocre e covarde como o policial Mariscot, que esperou o passar dos anos e um momento de embriaguez, para espancar Cirandinha com um soco inglês, ainda assim, recorrendo à ajuda de um assecla que o imobilizou sob a mira de um revólver. Inviabilizado o confronto direto, Luis entrou em sua Kombi e saiu a buscar uma arma que o igualasse ao agressor. Correu demais, todavia, e encontrou o fim num bloco de pedra que cobria o respiradouro em frente ao ginásio de remo do C. R. Flamengo. Seu acompanhante, o jóquei Juquinha Correia, gravemente ferido, conseguiu recuperar-se após longa internação, quando lhe amputaram uma perna.

Lembro-me de outras passagens tristes, como o sumiço no mar, primeiro do filho do Aloísio, depois de Carlinhos Manhães e João Carlos numa de suas idas e vindas - de prancha - às Ilhas Cagarras, sem falar na bala maldita que incapacitou Ruth, irmã de Rubinho. Esses casos traiçoeiros, porém, nada pareciam ter que os identificassem com o Hotel Leblon.

Pensando bem, não estou credenciado por qualquer entidade esotérica, que me habilite a alvitrista quimérico, decidindo o que é obra de encantamento e que reles detalhes se regulam pelos ditames da razão; nem padeço de tal credulidade, que preconize uma divindade cega, caprichosa na distribuição de dons, que interfira na sina de cada um. Se formos avaliar com isenção total de ânimos, por uma ótica sensata, é quase certo chegarmos à conclusão de que nenhum dos dramas descritos se deve a qualquer presságio ou fatalidade enredando o hotel, seu ambiente, vizinhos ou clientes. Mas, se acontecem com eles acidentes que confirmam seus pressentimentos, ou ocorrem, por diferentes motivos, repetidas desgraças no mesmo local e em suas cercanias, vale perguntar que impressão isso deixaria no espírito das pessoas. Não haveria uma certa tentação de acreditar?

E se causa estranheza o relato de tantas desditas ao lado das coisas boas e divertidas que inspiraram o subtítulo do livro, o leitor sempre poderá pular esta crônica; condescender com o argumento de que as más lembranças, na pior das hipóteses, servem de contraponto, ou tolerar a idéia de que, ao vaguearmos a fantasia pelas recordações do passado, enfeixamos sensações diversas, que terminam por não mais se delimitarem, tornando-se imagem única, indissociável, assim reconhecida pela saudade. A imaginativa do leitor certamente aperfeiçoará o que sair sombreado e confuso no desenho do autor. O que não me parece justo é exigir que eu ignore casos que me pareceram tão significativos e, muito menos, personagens que me foram tão caras e sedutoras. Calhou, infelizmente, de surpreendê-las num momento ruim.

 

 

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