Obras Publicadas - trechos

MINHA GENTE SAIU À RUA

Crônicas, 1998
Rogério Barbosa Lima
14x21cm
164 páginas
Esgotado

 

 

Porcelana

Ganhou o apelido ainda menino. Quando nasceu, seus pais já beiravam os quarenta e cercavam o pequeno de precauções descabidas; com tantos e tão extremados cuidados e à míngua de alegrias e exercícios, o pobre tornou-se excessivamente delicado de corpo e de alma: era o João Alfredo 'Porcelana'.

Desde cedo foi afastado das brincadeiras infantis em que houvesse choques, correrias ou cavalgadas. Nunca participou - nem na adolescência - de competições esportivas; em dias de frio ou chuva, agasalhado dos pés à cabeça, punha-se à janela horas a fio, os olhos murchos, invejando, silencioso, a algazarra que as outras crianças faziam na rua.

Como agravante maior, era constantemente esquecido à mercê de velhas tias e padres, em meio a rosários, novenas e ameaças de castigos e danações eternas. A ascendência desse soturno colegiado de escrupulosos, sotainas e vitalinas resultou por conceber um caráter frouxo, despreparado para os trancos da vida.

Na escola da cidadezinha onde nasceu e foi criado, não fez amigos. Aplicado nos estudos, decerto, mas sem brilho. Só se destacava pelo exagerado recato. Era socialmente nulo, avesso a intimidades e, muito mais ainda, a querelas ou escândalos de qualquer natureza. Uma única vez, já adulto, meteu-se involuntariamente num conflito. Vivia e trabalhava então no Rio de Janeiro, e visitava uma exposição de fotografias em antigo prédio do Centro. Como de hábito, cosia-se às paredes, encabulado. A horas tantas virou-se repentinamente para apreciar uma estampa no exato momento em que, esbaforido, passava um funcionário da casa, sujeito troncudo e mal-encarado, carregando pesada caixa atulhada de livros e revistas. Esbarraram-se e o pacote caiu. O mal-educado atirou-lhe os piores desaforos. Porcelana, ainda que hesitante, retrucou:

- Não aceito a sua admoestação.

A essa altura da vida, tinha seus vinte e dois anos e conseguira, com a ajuda do tio que emigrou cedo, colocar-se numa repartição do Ministério da Viação e Obras Públicas, com um salário decente. De compleição frágil e altura mediana, sua pele muito branca, fazendo jus ao apelido, contrastava com o tom escuro dos cabelos lustrosos de brilhantina. Sobre a boca inexpressiva, repousava um bigodinho reles. O que havia nele de notável eram os olhos: muito negros, grandes, mas muito tristes também.

Apesar de receber ordenado razoável, sempre morou em pensões baratas; só mudava de pouso quando as casas iam ser derrubadas para dar lugar a edifícios modernos. Se bem que muito asseado, vestia roupas desprovidas de aparato.

Jamais casou. A idéia da convivência, da intimidade assustava-o. Associava-a à perspectiva de resolver questões, dar ordens, dirigir a casa e, pior, conquistar e impor-se à companheira, logo ele, um traste para lidar com mulheres. Teve uma única e mal-sucedida experiência com uma profissional que tripudiou de sua falta de iniciativa, e, a partir desse fiasco, aquietou-se em voluntária clausura. Não que fosse completamente insensível ao sexo: se o desejo o atormentava, adotava soluções menos temerárias. Bastava-se a si mesmo.

Zeloso, metódico e sem obrigações sociais, era o primeiro a chegar à repartição. Arranjava demorada e cuidadosamente seus pertences sobre a mesa (que chamava de "minha escrivaninha") e mergulhava na faina diária, indiferente à monotonia de seu ofício. Cumpria seu dever laboriosamente, sem pressa, pois não tinha nada de especial a fazer depois, ou qualquer lugar interessante aonde ir. Nas poucas vezes em que os colegas dirigiam-se a ele, tratava-os do modo mais educado e superficial possível, furtando-se - sempre com uma boa desculpa na algibeira - a comparecer a qualquer reunião de confraternização. Almoçava na própria pensão: no percurso de ida e volta, usando o bonde, gastava apenas vinte minutos e uns poucos centavos para pagar a passagem.

Tudo conspirava para sedimentar sua índole solitária. Não desfrutava de amizades, nem era particularmente estimado; tampouco lhe tinham aversão. Transitava, simplesmente, sob o signo do mais desenxabido anonimato. Os pais morreram logo após sua chegada ao Rio de Janeiro (ele foi ao enterro, na primeira e última vez em que voltou à cidade natal) e o tio protetor sobreviveu-lhes ainda um par de anos. Da família, restava ele.

Quando se mudou para uma pensão na Glória e fez sessenta anos, julgou oportuno se aposentar. Podia proporcionar-se algum conforto. Arrumou o cômodo a seu gosto e cortou o último vínculo que o ligava à vida pública. Continuava a vestir-se sobriamente. Impossível vê-lo em mangas de camisa ou com punho e colarinho desabotoados. Manteve a prática higiênica de dormir e acordar cedo, e, à noite, lia. Excluídos os achaques típicos de sua idade, não tinha queixas maiores quanto à sua saúde, apesar da delicadeza famosa.

O único hábito novo que adquiriu, em decorrência da reforma, foi o de dar longas caminhadas de manhã pelo Passeio Público; se o parque estivesse vazio, deixava-se ficar um pouco, à sombra, sentado num velho banco de pedra.

Nessas andanças, por vezes cruzava com um tipo que morava na casa de cômodos ao lado da padaria da esquina: um homem idoso, mal-ajambrado, com o ar cansado daqueles a quem a vida maltratou cedo. A um aceno tímido, seguiu-se um encontro casual na padaria, até que, certa manhã, pegaram-se conversando no banco do parque.

Apanhado de surpresa, Porcelana ouviu o velho contar que vivia encostado na casa de cômodos, sobrevivendo às custas de uns trocados que o irmão lhe mandava mensalmente, com a condição de manter-se afastado da família, encargo esse que pareceu, a princípio, uma compensação odiosa, não obstante serem visíveis o ressentimento e a agressividade do sujeito. Com seu temperamento linfático, entretanto, Porcelana evitava pensar que tal cautela se justificasse.

A proximidade de tão desventurada criatura era tentadora para um solitário como João Alfredo, ainda que ele não percebesse isso, e pela primeira vez na vida aceitou bem a presença de um estranho. Manhã bem cedo, já ansiava pelo encontro a que ia com a sensação de estar envolvido em uma empreitada clandestina. Mas, nada de portas a dentro, que a esse extremo não chegaria de modo algum: eram cinco a dez minutos no banquinho e, assim mesmo, se outra pessoa se aproximasse, inventava um pretexto e afastava-se rapidamente. Ouvia bem mais do que falava.

Num domingo como outro qualquer, pela tarde, como o hóspede não tivesse cumprido o ritual matutino, nem comparecido ao almoço, a dona da pensão decidiu chamá-lo no quarto. A porta estava entreaberta e ela encontrou Porcelana de bruços no chão, o braço estranhamente recurvado e a cabeça quebrada, com muito sangue em volta.

O velho confessou o crime. Disse à polícia que achava o outro arrogante. Não suportava sua indiferença, seu modo distante. Resolvera testá-lo e provocou-o muito. O homem não reagiu. - "Parecia ter nojo de me tocar. Queria fazer pouco de mim", disse o velho. - "Eu não agüentei aquilo e arrebentei a cabeça dele".

Porcelana foi enterrado no dia seguinte, bem cedo, apenas com a presença dos coveiros. A senhoria providenciou tudo com o dinheiro do depósito de seis meses que o correto inquilino antecipara, mas não compareceu à cerimônia.