Obras Publicadas - trechos

PAULO FORTES – UM BRASILEIRO NA ÓPERA

Romance biográfico, 2004
Rogério Barbosa Lima
16x23cm
296 páginas
Preço promocional: R$ 19,00 (preço normal: R$ 35,00)

 

 

A Segunda Via

E resplandece a agonia da tísica, cuja graça faz dos sofrimentos uma sublime obra-de-arte (um doce para para quem pensou na ária Addio del Passato, da Traviata).

Prêmio mais sedutor ainda, fica reservado para o imaginativo leitor que vislumbrar no papel de Violetta um robusto soprano, beirando a primeira centena de quilogramas, a definhar de tuberculose, no último ato daquela inspirada criação de Verdi.

E, que dizer da sólida matrona - nos exuberantes acordes finais da Bohème - a afligir-se com a desdita da frágil Mimi, que se supõe toda pele e ossos, esvaindo-se tossigosa, como quem morre de cinco em cinco minutos?

Entre os aficionados, nenhuma surpresa, nenhum espanto: todos já presenciaram rotundos e anafados barítonos ostentando o physique-de-rôle de um lutador de sumô, fazendo-se passar pelo esguio Escamillo, alvo do desejo da cigana Carmen, na magnífica composição de Bizet.

Verdi, Puccini, Bizet, na paz das tumbas em que repousam suas ilustres carcaças, nem desconfiam que, no lugar das Twiggis e do Manolete - em cuja corrente sanguínea disseminaram, com invulgar talento, o bacilo de Koch -, exibem-se avigoradas senhoras e viçosos latagões, cuja compleição só encontra paralelo no corpanzil de Santo Alderede, abade de constituição física avantajada, que, não obstante esse significativo atributo, morreu tísico e é, por tudo isso, advogado contra a tosse.

Quase todos os cantores de ópera aparentam não poder com a carga que lhes toca suportar. Mesmo nos desenhos animados são apresentados como um grupo truanesco de gorduchões luzidios.

Nosso Paulo Fortes, bem antes de atingir o estrelato e ombrear-se, no cenário mundial, com os grandes nomes do bel-canto, experimentava dificuldades para manter a delgada silhueta com que deslizava lépido sobre patins, envergando a gloriosa jaqueta da equipe de hóquei do Tijuca Tênis Clube, e, no basquete, honrava as cores do Botafogo, levando os torcedores ao delírio, com seus felinos e decisivos rebotes e certeiros ganchos e jumps.

Superado o primeiro estágio, que o habilitou a ingressar na confraria dos "gordinhos", enveredou definitiva e galhardamente pela trilha glutônica dos expoentes da cena lírica, o que - salvo mover-se a custo - não lhe trouxe, de imediato, dificuldades intransponíveis. O brilho de seu desempenho como cortejado barítono levou-o, inevitavelmente, aos palcos europeus, onde cumpriu, com merecido sucesso, marcantes atuações no Teatro Comunale, de Florença, e no Carlo Felice, em Genova, em temporada de clima frio, gente hospitaleira e acolhedoras casas de pasto ... muitas osterias, de cozinha farta e generosa. Foi todo um semestre de êxitos, alternados com férias mimosas, de ricos pitéus e boas sobremesas. Ao retornar ao Brasil, tinha - mercê de tão ditosas vilegiaturas - operado em seu shape um consistente up-grade, que as farmácias do Rio de Janeiro não permitiam ocultar.

Preocupado com a possibilidade de o novo visual e a forma física deficiente afetarem sua bem-sucedida carreira e assustado com o vaticínio dos colegas e admiradores que lhe auguravam um dramático final à Mário Lanza, Fortes decidiu ouvir a opinião do tio, amigo e xará Paulo Barata Ribeiro, renomado obstetra e ginecologista, que, não obstante pontificar na especialidade, "funcionava" como oráculo da família, em tudo que dissesse respeito a problemas de saúde.

Curioso é que o requestado esculápio e valioso conselheiro tratava o corpulento galalau por "Paulinho", e este devotado sobrinho devolvia-lhe um imponente e abundancial "tio Paulo", paradoxo que se sustentava no tipo franzino do eminente profissional, que não o impediu, contudo, de notabilizar-se, também, como valoroso beque central do América (campeão do centenário de 22) e da seleção brasileira de futebol. Se questionado sobre a baixa estatura para a função e as dificuldades no jogo aéreo, o consagrado stopper respondia, num misto de modéstia e matreirice:

"O adversário podia até subir junto na disputa da bola, mas tinha que descer logo... para segurar o calção, que eu tinha desamarrado."

Lérias da vida! O essencial e urgente era considerar com atenção as inquietudes do delicado mancebo, e o desvelado doutor - após ouvir suas longas e justas queixas - , antes de iniciar os exames físicos, quis saber de generalidades, especialmente de seus hábitos alimentares, que, de cara, lhe pareceram as mais promissoras pistas para elucidar o mistério.

- Vamos ver o que pode ter causado esse desequilíbrio. Você está bem fortinho. Como tem se alimentado?

- Vam'lá, tio. Meu café da manhã, embora o considere importante, é uma refeição-de-assobio. Nenhuma extravagância, apenas algo para o que seja necessário usar o garfo também ... e sólido, que permita exercitar os dentes. Trouxe da Suíça uma belíssima xícara ... grande ... parece um penico. Repito o café com leite, acompanhado de meia dúzia de pãezinhos com manteiga e queijo ... Ah! Presunto, ovos e uma fruta, é claro. E geléia ... não abro mão de um pote de geléia.

- Vá em frente. E, depois?

- Lá pelas dez e meia da manhã, termina o primeiro ensaio e eu já tô roxo de fome. Vou até a cantina, traço dois mistos quentes e uma ou duas Coca-Colas. Ao meio-dia, saio para almoçar, geralmente na Bol ou na Colombo. Aí, sim, mando ver: como dois pratos ...

Enquanto o precioso sobrinho ia enfileirando as iguarias, o tio embasbacava para aquela disposição de ânimo: "Um sujeito que chama tracalhazes de pão, queijo e presunto de 'refeição-de-assobio' é capaz das maiores atrocidades; de comer num só dia os ganhos da semana. Esse não aperta a bolsa". Impressionava-o a convicção com que o outro ia acumulando montes de cabidela, altas serras de arroz de forno, montanhas de bifes de numerosa cebolada e ... batatinhas recheadas.

- ... às vezes, um filé de veado macerado em xerez, com geléia de noz, o senhor sabe: é preciso relaxar para a tarefa da tarde, lavar a alma. Um cardápio bem arranjado é sedução para os olhos, êxtase para a alma. Enfim, a música e a cozinha são como irmãs.

- Falando em tarefa da tarde, você janta a que horas?

- Peraí, tio. Há um intervalo no ensaio vespertino. Às quatro/quatro e meia, a turma sai prum lanchinho. A essas horas, é coisa frugal.

- Sei, posso imaginar o quanto é frugal ...

- Quando termina o ensaio, vou direto para a Fiorentina, no Leme, com um bando de gente. Lá, se mangia proprio bene, e eu aproveito. Só tenho dois adversários à altura: Jardel Filho e Maurício do Valle.

Barata Ribeiro continuava a pasmar para aquela interminável patuscada de comes e bebes. Assustava-o tão extraordinária comezaina, e já comparava o sobrinho ao imperador Vitélio, o devoto de Baco. Visualizava Paulinho presidindo a jantarada, repetindo, feliz, os pratos, comendo à tripa forra uma ceia substancial, que só com a vista fartaria os mais famintos. "Esse meu querido sobrinho glutão, positivamente, apresenta síndromes de nevropatia. Esse enlevo, esse rapto dos sentidos vai substituindo as qualidades afetivas (tão positivas nele) pelo fanatismo. Acaba que o estômago lhe desmancha o que a cabeça tiver organizado. Caramba! Mário Lanza é pouco! Preciso ameaçá-lo com algo mais contundente".

Paulo Fortes continuava, minucioso como ele só:

- ... uma refeição de certa cerimônia, não tão aparatosa quanto um banquete. Meu estômago se dá bem com os comeres à francesa; não necessariamente coisa por demais elegante. Duas sopas, hors d'ouevres, duas entradas, assado, caça, um guisado fumegante compõem um jantarinho satisfatório, tio. Um menu bem-composto, talvez seja a definição mais correta.

"Menu bem-composto!" - conjecturava, abismado, o Paulão médico - "Daqui a pouco vai jurar que se recolhe ao catre, esfaimado, à míngua de víveres". E, dirigindo-se ao sobrinho:

- Bem ... deixe-me dizer o que penso ...

- ... agora! Se eu chegar em casa com fome (porque o pessoal ainda demora no bar e só belisca aqui e ali), então dou uma geral na geladeira e me defendo com uma sopinha de tomates e um sanduíche frio. Vez por outra, a empregada deixa lá uma guloseima, um manjarzinho delicado, que cai bem àquela hora.

- Terminou? Sim, porque eu presumo que, após esse outro frugal repasto, você, finalmente, tomba na cama, consolado, na beatitude do comilão repleto.

- Ah! Nem tenha dúvida. Quem trabalha muito deve ter lá suas compensações. A gente se quer na companhia de amigos, na velha confraternização, a barriguinha cheia e coisa e tal, mas chega uma hora em que necessita descansar um pouco.

- Tomara, então, que você esteja bastante descansado, relaxadinho, irmanado com o bródio, porque o que tenho a lhe dizer é sério.

- Como, sério? Assim o senhor me apavora. O que há de errado comigo, afinal?

- O que há é que você está embuchado, a ponto de rebentar pela culatra. É partir para a cirurgia, e ponto final.

- Cirurgia! Mas, pra que, tio? Que tipo de operação?

- Coisa banal, meu bom Paulinho. Para providenciar uma segunda via. Como diriam no teatro de Parma, un'altro culo.